sábado, 13 de fevereiro de 2010

Todo o Mundo e Ninguém


Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.


Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:


Ninguém: Tu estás a fim de quê ?


Todo Mundo: A fim de coisas buscar
que não consigo topar.
Mas não desisto, porque
O cara tem de teimar.


Ninguém: Me diz teu nome primeiro.


Todo Mundo: Eu me chamo Todo Mundo e passo o dia e o ano inteiro correndo atrás de dinheiro, seja limpo ou seja imundo.


Belzebu: Vale a pena dar ciência
e anotar isto bem, por ser fato verdadeiro: Que Ninguém tem consciência
e Todo Mundo, dinheiro.


Ninguém: E o que mais procuras, hem?


Todo Mundo: Procuro poder e glória.


Ninguém: Eu cá não vou nessa história.
Só quero virtude...Amém.


Belzebu: Mas o pai não se ilude
e traça: Livro Segundo.
Busca o poder Todo Mundo
e Ninguém busca virtude.


Ninguém: Que desejas mais, sabido?


Todo Mundo: Minha ação elogiada
Em todo e qualquer sentido.


Ninguém: Prefiro ser repreendido
quando der uma mancada.


Belzebu: Aqui deixo por escrito
o que querem, lado a lado:
Todo Mundo ser louvado
e Ninguém levar um pito.


Ninguém: E que mais, amigo meu?


Todo Mundo: Mais a vida. A vida, olé!


Ninguém: A vida? Não sei o que é.
A morte, conheço eu.


Belzebu: Esta agora é muito forte
e guardo para ser lida:
Todo Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.


Todo Mundo: Também quero o Paraíso,
mas sem ter que me chatear.


Ninguém: E eu, suando pra pagar
minhas faltas de juízo!


Belzebu: Para que sirva de aviso,
mais uma trama se escreve:
Todo Mundo quer Paraíso
e Ninguém paga o que deve.


Todo Mundo: Eu sou vidrado em tapear,
e mentir nasceu comigo.


Ninguém: A verdade eu sempre digo
sem nunca chantagear.


Belzebu: Boto anúncio na cidade,
deste troço curioso:
Todo Mundo é mentiroso
e Ninguém fala a verdade.


Ninguém: Que mais, bicho?


Todo Mundo: Bajular


Ninguém: Eu cá não jogo confete.


Belzebu: Três mais quatro igual a sete.
O programa sai do ar.
Lero lero lero lero,
curro paco paco paco.
Todo Mundo é puxa-saco
e Ninguém quer ser sincero!


Autor: Gil Vicent (criador do teatro português)


Sobre o autor:


Não se sabe, ao certo, a data do nascimento de Gil Vicente. Talvez 1452, 1465 ou 1470. Supõe-se tenha falecido em 1537. Trabalhava junto à corte, como mestre da balança (ou seja, diretor da Casa da Moeda). Em 1502, por ocasião do nascimento do príncipe D. João III, representou perante a rainha mãe, ainda acamada, a peça Auto da visitação (ou Monólogo do vaqueiro). Com ela iniciava o teatro em Portugal.
Em
sua biografia quase tudo são hipóteses, inclusive a cidade portuguesa que teria sido seu berço natal.
Mas o importante mesmo é o valor de sua extensa obra teatral, com a qual pintou um painel crítico da sociedade portuguesa quinhentista, não lhe tendo escapado classe social alguma. Suas peças eram, em geral, representadas nos paços reais, com a corte presente. Os cenários e os recursos técnicos eram pobres, mas os temas engenhosos , as personagens decalcadas da realidade e a agilidade do diálogo, além do humor, fizeram do autor um dos mais significativos de toda a história da literatura portuguesa. Principais obras: Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória (a chamada Trilogia das barcas), Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira.
Apesar da dificuldade que poderá ocorrer na leitura e representação de suas peças, por causa da linguagem antiga, vale a pena conhecer esse autêntico gênio do teatro português de todos os tempos.


Fonte: "Aprendendo o Português...", Dino Preti, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

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